quarta-feira, 13 de maio de 2020

NÃO É DIA DE NEGRO

SERÁ QUE JÁ RAIOU A LIBERDADE

Lindivaldo Oliveira Leite Junior[i]

 

Uma das principais transformações do século XIX no Brasil foi à abolição da escravatura. Foi realmente um século de mudanças estruturais onde existiram inúmeros conflitos sócio-políticos, entre eles os que levaram a outra transformação também importante, a República.

As mudanças também foram regionais com foco do desenvolvimento, agora, mais voltado ao sudeste cafeeiro, substituindo a cana de açúcar, nordestina de economia próspera com base na mão de obra escrava. 

Desse ponto de vista a abolição da escravatura, base da economia nacional, não seria uma mudança fácil, abalaria a estrutura da sociedade e do estado Brasileiro. De um lado a população de negros, com seu interesse de mudanças concretas de suas vidas, de ouro, o capital, preocupado com a manutenção de seu lucro e de seu status.


O processo que pôs fim o trabalho escravo no Brasil não foi fácil, nem rápido, tão pouco justo. Do ponto de vista histórico, todo o século XIX foi testemunha da luta da população negra para concretizar a conquista de uma lei que pusesse definitivamente fim ao regime. Num enfrentamento cotidiano as elites, os negros tiveram papel fundamental no fim da escravidão ao empreenderem, para além das fugas e organizações dos quilombos, revoltas e movimentos urbanos e ações individuais que se caracterizaram fundamentais para o desgasto do sistema escravocrata no Brasil.

O conjunto de leis que retardaram o fim da escravidão, também serviu de argumento para a atuação dos que desejavam o fim da escravidão, negros ou não negros vinculados aos movimentos abolicionistas, a exemplo da lei que proibia o trafica de escravos (1850), da lei do ventre livre (1871) e da lei do sexagenário (1885), que respectivamente tornava ilegal a entrada de mão de obra escrava, a escravização de crianças e dos velhos.

O estado brasileiro com tais leis, além de retardar o fim de uma grave violação de direitos, colocam velhos e crianças em situação de ainda mais vulnerabilidade e beneficia na prática os proprietários e não a população negra. De qualquer forma essas mudanças legais, incluindo o fim do trafico, permitiam a compra ou os processos jurídicos que lidertaram muitos negros antes da lei áurea (1888).

Entre os inúmeros personagens negros protagonistas desse movimento de libertação digamos mais urbana, vinculados ao debate da legalidade, durante esse processo para o definitivo fim da escravidão foi um brasileiro negro chamado Luiz Gama. Morou no Rio de Janeiro, em São Paulo, livre, que se tornou advogado, conseguiu com o argumento da entrada ilegal de negros após o fim do trafico e de ouras legislações viabilizar a libertação de centenas de homens e mulheres.

Um herói nacional, Gama era filho de Luiza Mahim, uma das mulheres envolvidas nas luas liberarias do nordeste que se destacou por sua relação com os revolucionários da Revolta dos Malês na Bahia (1835).

Dito isso, evidencio o que já reafirma uma nova historiografia brasileira, que o fim da escravidão no Brasil não está apenas associado à assinatura da lei áurea nem ao feito da princesa como redentora, mas ao conjunto de influencias sociais e econômico. A luta e a organização negra para desgastar o sistema.

Não se pode deixar de reconhecer a existência da lei, quem a assinou e o governo que a publicou, também não podemos isolar do contexto. Do ponto de vista econômico, é preciso compreender também a quem beneficiou tais mudanças. Não foram aos ex escravos, a grande massa da população. Beneficiou verdadeiramente ao capital.

Todas essas leis de antes da lei áurea,  foram instrumentos capazes de dar as condições para que senhores de escravos, os grandes proprietários que tinham super lucro com a escravidão, se mantivesse sem prejuízos. E garantisse toda a estrutura de formação do novo modelo capitalista brasileiro e os seus acordos de comercio internacional.

O processo que pôs fim oficial ao trabalho escravo no Brasil, não caminhou junto com nenhum processo de inclusão da mão de obra dos trabalhadores negros ex escravos, na nova ordem capitalista que se impunha. Ao contrário, colocou nas ruas um conjunto de trabalhadores sem, indenização de seus prejuízos históricos ou de inserção na sociedade com direito a moradia, terra e trabalho.

Ao contrario, a legislação impedia negros ao acesso ao conhecimento formal, a postos de trabalho e a praticar sua cultura, criminalizada como vadiagem.

A nova ordem capitalista do fim do XIX buscava substituir a mão de obra escrava pela mão de obra assalariada, porém sem os ex-escravos. O Estado subsidiava a vinda imigrantes europeus para a nova tarefa. O Brasil compreendeu que os milhares de negros não poderiam se adaptar com o trabalho assalariado e colocou nas ruas e nas comunidades amontoados, a míngua, milhares de pessoas.

Para a população negra, restavam os trabalhos manuais, os pequenos comércios, o sub- emprego, os serviços domésticos, a rua, como continua sendo a maioria até os dias atuais. Toda essa perspectiva de exclusão da população negra é parte de uma concepção racista de inferioridade de uma raça sobre a outra, de um modelo de governar racista, patriarcal e patrimonialista.

O modelo patrimonialista implementado no Brasil com a monarquia, família real, capitanias hereditárias, títulos de nobreza, privilégios, não permitia que a consolidação da república incluísse a inclusão dessa massa de ex escravos descendentes de africanos na estrutura social.

A abolição não seria concluída no Brasil, como ainda não foi devido ao modelo de sociedade que se estruturou. A lei Àurea de 1888 tornava a população negra livre até certo ponto, uma abolição que podemos denominar inconclusa. A falta de condições básicas para seguir a vida obrigava parte significativa desses libertos, passarem a maior parte de suas vidas ainda como escravos para garantia de sua sobrevivência.

A abolição e seu processo compunha um conjunto de transformações sociais que abalaram a sociedade numa transição que se impunha novos comportamentos na forma de vestir, no comportamento público, na mudança de um modo rural de vida familiar para um modo mais urbano e moderno que em alguma medida abalava o intocável modelo patriarcal brasileiro frente a modernidade trazida pelas mudanças econômica.

Estamos no século XXI, e o Brasil não superou os efeitos perversos da escravidão e sua abolição inconclusa. Para citar um exemplo, a população negra brasileira ainda é a maioria nos serviços domésticos, uma herança do tempo em que para cada criança branca, uma ama de leite e cuidadora, hoje babás.

Para cada família, um conjunto de serviçais da casa para servir aos caprichos, manter o espaço limpo, preparar suas comidas e até prestar serviços de comercio ambulantes para seus donos em tempos de crise financeira.

Dificilmente do ponto de vista social, os herdeiros das casas grandes se acostumariam a encontrar os negros em situação diferente as quais estavam acostumados. Como serviçais, sub raça, classe inferior. O que influenciaria no modelo de desenvolvimento local, excludente, patrimonialista, patriarcal, racista do ¨lugar do negro¨, de uma exclusão naturalizada.

O patrimonialismo nesse caso brasileiro, se difere do conceito original que vem do feudalismo, onde o senhor feudal eram donos de seu patrimônio e usava desse patrimônio para o poder político. O Patrimonialismo de que tratamos hoje, se dá ao contrário, usa-se do poder político para benefícios pessoais, como se o local que governa seja seu território particular, de sua família, de seus descendentes. O capital privado com base nessa concepção se legitima para intervir nas decisões do estado.

Um patrimonialismo que se caracteriza pela confusão entre público e privado (terras, recursos, propriedades), Patriarcal, Clientelista, Hereditários. Descaso com demandas sociais e perspectiva apenas como manutenção do poder. Respeito às tradições dos donos do poder e do capital, a justiça para poucos.

Para os poucos que estão no topo da pirâmide social, as elites no poder central ou nos estados e municípios. Nesses territórios, o poder dos donos de terra, as oligarquias locais se mantiveram influenciando ou comandando o poder político para garantia de seu status-ko e de seus privilégios. No Brasil, práticas patrimonialista alicerçaram as relações de poder.

Portanto, não é exagero afirmar que a perspectiva patrimonialista do capitalismo brasileiro, permeou todo o processo de desenvolvimento do país e a política brasileira desde os governos provinciais as primeiras experiências de república.

Para fazer um salto na história e poder refletir como a concepção racista excludente da história brasileira figura como concepções atuais, podemos pontuar, o atual governo brasileiro que é fruto de um golpe político, jurídico midiático da elite, que marca o século XXI.

A subserviência ao capital, a entrega do patrimônio público brasileiro a iniciativa privada, o descaso com questões ambientais, o fortalecimento de concepções neo fascistas, o racismo e a misoginia explícitos, o enxugamento da máquina do estado,  e aperfeiçoamento de um modelo de estado Patrimonialista implementado no Brasil está representado na atualidade pelo modelo Bolsonarismo, dentro e fora do governo, disfarçados de patriotas com camisas e bandeiras verde e amarela, como se os símbolos oficiais bastassem para governar.

Tal modelo desafia a sociedade brasileira a entender as transformações políticas ocorridas nos últimos anos (demarcado pelas manifestações de 2013) e que tem produzido uma constante ameaça ao estado democrático de direito que o Brasil tanto se orgulha.

Para entender esses fenômenos carregados de um novo patrimonialismo, do fortalecimento de concepções tradicionais de família, de racismos e misoginia, é preciso revisitar a história.

Um país que nesse século viveu uma rica experiência democrática e porque não dizer de aprofundamento de sua democracia. Que tem uma legislação, via carta magna, que valoriza a participação social no parlamento e no executivo em seus diversos níveis de poder. Municipal, Estadual e Federal.

A redemocratização do estado brasileiro, promoveu um processo pulsante de envolvimento dos diversos setores, e o pós-constituinte de 1988, cem anos após a abolição da escravatura, um desafio para implementação de seus avanços em um país onde continua firme o capitalismo, o racismo e o patrimonialismo como base para as práticas de exclusão social.

É preciso revisitar a história brasileira para compreender esse momento e vislumbrar a inserção negra e uma abolição real. #13demaionaoédiadenegro.



[i]  LEITE JUNIOR, Lindivaldo. É aivista do movimento negro e do movimento cultural. Tem formação em História pela UFRPE, Especialização em Políticas Culturais pela UFRB, Atualmente estuda Maestria em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSOS.


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