SERÁ QUE JÁ RAIOU A LIBERDADE
Lindivaldo Oliveira
Leite Junior[i]
Uma das principais
transformações do século XIX no Brasil foi à abolição da escravatura. Foi
realmente um século de mudanças estruturais onde existiram inúmeros conflitos
sócio-políticos, entre eles os que levaram a outra transformação também
importante, a República.
As mudanças também foram
regionais com foco do desenvolvimento, agora, mais voltado ao sudeste cafeeiro,
substituindo a cana de açúcar, nordestina de economia próspera com base na mão
de obra escrava.
Desse ponto de
vista a abolição da escravatura, base da economia nacional, não seria uma
mudança fácil, abalaria a estrutura da sociedade e do estado Brasileiro. De um
lado a população de negros, com seu interesse de mudanças concretas de suas
vidas, de ouro, o capital, preocupado com a manutenção de seu lucro e de seu
status.
O processo que pôs
fim o trabalho escravo no Brasil não foi fácil, nem rápido, tão pouco justo. Do
ponto de vista histórico, todo o século XIX foi testemunha da luta da população
negra para concretizar a conquista de uma lei que pusesse definitivamente fim
ao regime. Num enfrentamento cotidiano as elites, os negros tiveram papel
fundamental no fim da escravidão ao empreenderem, para além das fugas e
organizações dos quilombos, revoltas e movimentos urbanos e ações individuais
que se caracterizaram fundamentais para o desgasto do sistema escravocrata no
Brasil.
O conjunto de leis
que retardaram o fim da escravidão, também serviu de argumento para a atuação
dos que desejavam o fim da escravidão, negros ou não negros vinculados aos
movimentos abolicionistas, a exemplo da lei que proibia o trafica de escravos
(1850), da lei do ventre livre (1871) e da lei do sexagenário (1885), que
respectivamente tornava ilegal a entrada de mão de obra escrava, a escravização
de crianças e dos velhos.
O estado brasileiro
com tais leis, além de retardar o fim de uma grave violação de direitos, colocam
velhos e crianças em situação de ainda mais vulnerabilidade e beneficia na
prática os proprietários e não a população negra. De qualquer forma essas
mudanças legais, incluindo o fim do trafico, permitiam a compra ou os processos
jurídicos que lidertaram muitos negros antes da lei áurea (1888).
Entre os inúmeros
personagens negros protagonistas desse movimento de libertação digamos mais
urbana, vinculados ao debate da legalidade, durante esse processo para o
definitivo fim da escravidão foi um brasileiro negro chamado Luiz Gama. Morou no Rio de Janeiro, em São Paulo, livre, que se tornou advogado,
conseguiu com o argumento da entrada ilegal de negros após o fim do trafico e de ouras legislações viabilizar a libertação de centenas de homens e mulheres.
Um herói nacional, Gama
era filho de Luiza Mahim, uma das mulheres envolvidas nas luas
liberarias do nordeste que se destacou por sua relação com os revolucionários
da Revolta dos Malês na Bahia (1835).
Dito isso,
evidencio o que já reafirma uma nova historiografia brasileira, que o fim da
escravidão no Brasil não está apenas associado à assinatura da lei áurea nem ao
feito da princesa como redentora, mas ao conjunto de influencias sociais e
econômico. A luta e a organização negra para desgastar o sistema.
Não se pode deixar
de reconhecer a existência da lei, quem a assinou e o governo que a publicou, também
não podemos isolar do contexto. Do ponto de vista econômico, é preciso
compreender também a quem beneficiou tais mudanças. Não foram aos ex escravos,
a grande massa da população. Beneficiou verdadeiramente ao capital.
Todas essas leis de
antes da lei áurea, foram instrumentos
capazes de dar as condições para que senhores de escravos, os grandes
proprietários que tinham super lucro com a escravidão, se mantivesse sem
prejuízos. E garantisse toda a estrutura de formação do novo modelo capitalista
brasileiro e os seus acordos de comercio internacional.
O processo que pôs
fim oficial ao trabalho escravo no Brasil, não caminhou junto com nenhum
processo de inclusão da mão de obra dos trabalhadores negros ex escravos, na
nova ordem capitalista que se impunha. Ao contrário, colocou nas ruas um
conjunto de trabalhadores sem, indenização de seus prejuízos históricos ou de
inserção na sociedade com direito a moradia, terra e trabalho.
Ao contrario, a
legislação impedia negros ao acesso ao conhecimento formal, a postos de
trabalho e a praticar sua cultura, criminalizada como vadiagem.
A nova ordem
capitalista do fim do XIX buscava substituir a mão de obra escrava pela mão de obra
assalariada, porém sem os ex-escravos. O Estado subsidiava a vinda imigrantes
europeus para a nova tarefa. O Brasil compreendeu que os milhares de negros não
poderiam se adaptar com o trabalho assalariado e colocou nas ruas e nas
comunidades amontoados, a míngua, milhares de pessoas.
Para a população
negra, restavam os trabalhos manuais, os pequenos comércios, o sub- emprego, os
serviços domésticos, a rua, como continua sendo a maioria até os dias atuais. Toda
essa perspectiva de exclusão da população negra é parte de uma concepção
racista de inferioridade de uma raça sobre a outra, de um modelo de governar
racista, patriarcal e patrimonialista.
O modelo
patrimonialista implementado no Brasil com a monarquia, família real,
capitanias hereditárias, títulos de nobreza, privilégios, não permitia que a
consolidação da república incluísse a inclusão dessa massa de ex escravos
descendentes de africanos na estrutura social.
A abolição não
seria concluída no Brasil, como ainda não foi devido ao modelo de sociedade que
se estruturou. A lei Àurea de 1888 tornava a população negra livre até certo
ponto, uma abolição que podemos denominar inconclusa. A falta de condições
básicas para seguir a vida obrigava parte significativa desses libertos, passarem
a maior parte de suas vidas ainda como escravos para garantia de sua
sobrevivência.
A abolição e seu
processo compunha um conjunto de transformações sociais que abalaram a
sociedade numa transição que se impunha novos comportamentos na forma de
vestir, no comportamento público, na mudança de um modo rural de vida familiar
para um modo mais urbano e moderno que em alguma medida abalava o intocável
modelo patriarcal brasileiro frente a modernidade trazida pelas mudanças econômica.
Estamos no século
XXI, e o Brasil não superou os efeitos perversos da escravidão e sua abolição
inconclusa. Para citar um exemplo, a população negra brasileira ainda é a
maioria nos serviços domésticos, uma herança do tempo em que para cada criança
branca, uma ama de leite e cuidadora, hoje babás.
Para cada família,
um conjunto de serviçais da casa para servir aos caprichos, manter o espaço
limpo, preparar suas comidas e até prestar serviços de comercio ambulantes para
seus donos em tempos de crise financeira.
Dificilmente do
ponto de vista social, os herdeiros das casas grandes se acostumariam a
encontrar os negros em situação diferente as quais estavam acostumados. Como
serviçais, sub raça, classe inferior. O que influenciaria no modelo de desenvolvimento
local, excludente, patrimonialista, patriarcal, racista do ¨lugar do negro¨, de
uma exclusão naturalizada.
O patrimonialismo
nesse caso brasileiro, se difere do conceito original que vem do feudalismo,
onde o senhor feudal eram donos de seu patrimônio e usava desse patrimônio para
o poder político. O Patrimonialismo de que tratamos hoje, se dá ao contrário,
usa-se do poder político para benefícios pessoais, como se o local que governa
seja seu território particular, de sua família, de seus descendentes. O capital
privado com base nessa concepção se legitima para intervir nas decisões do
estado.
Um patrimonialismo
que se caracteriza pela confusão entre público e privado (terras, recursos,
propriedades), Patriarcal, Clientelista, Hereditários. Descaso com demandas
sociais e perspectiva apenas como manutenção do poder. Respeito às tradições dos
donos do poder e do capital, a justiça para poucos.
Para os poucos que
estão no topo da pirâmide social, as elites no poder central ou nos estados e
municípios. Nesses territórios, o poder dos donos de terra, as oligarquias
locais se mantiveram influenciando ou comandando o poder político para garantia
de seu status-ko e de seus privilégios. No Brasil, práticas patrimonialista
alicerçaram as relações de poder.
Portanto, não é
exagero afirmar que a perspectiva patrimonialista do capitalismo brasileiro,
permeou todo o processo de desenvolvimento do país e a política brasileira
desde os governos provinciais as primeiras experiências de república.
Para fazer um salto
na história e poder refletir como a concepção racista excludente da história
brasileira figura como concepções atuais, podemos pontuar, o atual governo
brasileiro que é fruto de um golpe político, jurídico midiático da elite, que marca
o século XXI.
A subserviência ao
capital, a entrega do patrimônio público brasileiro a iniciativa privada, o
descaso com questões ambientais, o fortalecimento de concepções neo fascistas,
o racismo e a misoginia explícitos, o enxugamento da máquina do estado, e aperfeiçoamento de um modelo de estado Patrimonialista
implementado no Brasil está representado na atualidade pelo modelo Bolsonarismo,
dentro e fora do governo, disfarçados de patriotas com camisas e bandeiras
verde e amarela, como se os símbolos oficiais bastassem para governar.
Tal modelo desafia
a sociedade brasileira a entender as transformações políticas ocorridas nos
últimos anos (demarcado pelas manifestações de 2013) e que tem produzido uma
constante ameaça ao estado democrático de direito que o Brasil tanto se
orgulha.
Para entender esses
fenômenos carregados de um novo patrimonialismo, do fortalecimento de
concepções tradicionais de família, de racismos e misoginia, é preciso revisitar
a história.
Um país que nesse
século viveu uma rica experiência democrática e porque não dizer de
aprofundamento de sua democracia. Que tem uma legislação, via carta magna, que
valoriza a participação social no parlamento e no executivo em seus diversos
níveis de poder. Municipal, Estadual e Federal.
A redemocratização
do estado brasileiro, promoveu um processo pulsante de envolvimento dos
diversos setores, e o pós-constituinte de 1988, cem anos após a abolição da
escravatura, um desafio para implementação de seus avanços em um país onde
continua firme o capitalismo, o racismo e o patrimonialismo como base para as
práticas de exclusão social.
É preciso revisitar
a história brasileira para compreender esse momento e vislumbrar a inserção
negra e uma abolição real. #13demaionaoédiadenegro.
[i] LEITE JUNIOR, Lindivaldo. É aivista do movimento negro e do movimento cultural. Tem formação em História pela UFRPE, Especialização em Políticas Culturais pela UFRB, Atualmente estuda Maestria em Estado, Governo e Políticas Públicas pela FLACSOS.
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